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12 de março de 2012

Entrevista: Guilherme Braga





Se você já leu, em português, as obras As visões de Cody, Big Sur ou Anjos da Desolação, de Jack Kerouac (que completaria hoje noventa anos), então é provável que tenha conhecido, além do texto de Kerouac, o resultado final do trabalho do porto-alegrense Guilherme da Silva Braga. Tradutor formado em Letras (habilitação português-inglês) pela UFRGS, Guilherme possui diversos nomes de peso dentre os autores de livros que já traduziu, como H.P. Lovecraft, Franz Kafka e Edgar Allan Poe. A CLL conversou com ele sobre o ofício de tradutor:

Como e quando começaste tua carreira detradutor?

Eu lecionavainglês em 2005 quando fiquei sabendo que a L&PM estava precisando detradutores. Eu não tinha muita experiência – só tinha traduzido alguns poemas etextos para mim mesmo, mas nada profissionalmente –, mas mesmo assim resolvitraduzir uns trechos do Oscar Wilde para mostrar o que sabia fazer e mandar junto com os poemas. Comogostaram do meu trabalho, tive a oportunidade de traduzir o livro Os seis bustos de Napoleão, com contos doSherlock Holmes. Traduzi, entreguei e recebi o material de volta com algumascríticas, o que é comum no início da carreira de tradutor. Revisei mais uma vezessa tradução e em seguida comecei a fazer o curso de tradução literáriaministrado pela professora Beatriz Viégas-Faria, que tinha por objetivo acabarcom a maior dificuldade para quem pretende entrar no mercado de traduçãoliterária: ninguém te dá trabalho porque tu não tem experiência e tu não temexperiência porque ninguém te dá trabalho. Na oficina os alunos traduziam obrasliterárias – em geral contos – que a L&PM queria lançar e assim, com asupervisão da Beatriz, tinham a oportunidade de traduzir textos para publicação.Uma das obras solicitadas quando eu era aluno foi A Volta do Parafuso, doHenry James. Escolhi traduzir essa novela e o pessoal da editora gostou doresultado. A partir daí, comecei a reduzir minha carga horária comoprofessor de inglês e a aumentar o tempo dedicado aos trabalhos de tradução.Depois passei um ano letivo na Hungria com uma bolsa de estudo, e duranteesse tempo traduzi os diários da Anaïs Nin. Quando voltei para Porto Alegre evi que não tinha mais possibilidade de conciliar o tempo das aulas com o dastraduções, me demiti para trabalhar apenas como tradutor. Foi nessa época que opessoal da L&PM me ofereceu o Visõesde Cody do Jack Kerouac para traduzir, e o livro acompanhado por um alerta deque já tinha sido recusado por três tradutores devido às dificuldades do texto.Li alguns trechos com calma e resolvi encarar o desafio, e acho que foi apartir daí que consegui me estabelecer como tradutor.

Traduzir a prosade Kerouac é um desafio maior do que traduzir textos mais clássicos, como os dePoe ou de Conan Doyle?

É bemdiferente, na verdade. Embora a prosa mais antiga de autores como o Poe,Lovecraft e Henry James tenha uma sintaxe super-rebuscada, com frases que àsvezes ocupam uma página inteira, em geral o que esses autores escrevem éproduto de um pensamento claro, formulado de uma maneira articulada. No Kerouacnão. O texto dele não tem nada de muito claro e preciso. Em muitos casos,aliás, fica claro que ele estava se lixando para a construção da frase. Masapesar do aspecto desleixado dessa escrita, não sei se a prosa do Kerouac eratão livre quanto parece. Muitas vezes ele começa falando de um assunto que o lembrade outro assunto sobre o qual passa mais três páginas falando; esse segundoassunto leva a um terceiro, e umas vinte páginas mais adiante o Kerouac retomao primeiro assunto como se nada tivesse se passado desde a primeira vez em queo menciona. Não sei se é possível fazer isso no improviso.

Vários autoresbrasileiros conhecidos, como Machado de Assis, Monteiro Lobato e CarlosDrummond já trabalharam como tradutores. Tu tens algum tradutor brasileiro quete sirva de inspiração?

Logo quecomecei a traduzir, eu estava lendo o Atonement,do Ian McEwan, e a minha namorada tinha ganhado a tradução brasileira do livro.Essa obra tem um trabalho muito legal em cima da linguagem. Era o tipo de livroque eu lia e pensava “Como é que um tradutor iria lidar com esse trecho”? Comonessa época eu ainda tinha meio essa ideia de que existem coisas intraduzíveis,resolvi cotejar o original com a tradução do Paulo Henriques Brito e vi que eletinha feito coisas muito legais com o texto para conseguir um efeito estético parecidoem português. Ele também traduziu alguns livros do Kerouac que mais tarde traduzi,e sempre que possível eu dava umas espiadas nas traduções dele e ficavasatisfeito ao ver que, apesar de as traduções serem bem diferentes, a maneiracomo nós tratamos o texto é parecida. Acho que não são traduções cominterpretações muito diferentes quanto ao que deva ser feito com aquele texto.Não costumo fazer cotejos integrais quando existe outra tradução de um livro noqual esteja trabalhando, mas sempre que possível acho importante comparartrechos.

Além do inglês,trabalhaste também com traduções de diversos outros idiomas. Como surgiram asoportunidades de traduzir outras línguas?

As coisas nomercado de tradução acontecem de um jeito muito imprevisível. Hoje, tenhotraduções publicadas de inglês, sueco, alemão e húngaro, e esse ano vai sairuma tradução do norueguês. Isso começou quando o pessoal da L&PM descobriuque eu tinha estudado alemão e me pediu para ler um livro e escrever um parecerdizendo se valia a pena publicá-lo aqui no Brasil ou não. Eu disse que não tinhacomo traduzir aquele livro, mas como era simplesmente um parecer crítico, topeiler . Depois fiz pareceres de outras obras alemãs e essas leituras melhoraramconsideravelmente o meu conhecimento da língua. Mais tarde surgiu aoportunidade de traduzir alguns textos do Kafka, e aceitei a proposta depois deanalisar os textos e passar um bom tempo pesquisando para terminar o trabalho.Também passei vários anos estudando sueco em Porto Alegre, e por conta disso eutinha umas traduções engavetadas de peças do Strindberg traduzidas do sueco. Em2010 essas peças foram publicadas pela Hedra no volume Senhorita Júlia e outras peças, e em função disso no ano passado aL&PM me perguntou se eu leria um livro em norueguês, já que sueco enorueguês são línguas extremamente parecidas. Topei e fiquei impressionado coma facilidade que tive para fazer a leitura. No fim acabei traduzindo o livro.

Quais são ascaracterísticas que um bom tradutor precisa ter?

Tem quegostar de ficar quieto, de pesquisar... acho que por esse lado é necessário sermeio perfeccionista, porque isso ajuda muito na hora de pesquisar. Não se podesimplificar demais e deixar coisas de fora do texto – e por isso em certassituações o tradutor passa dias procurando a solução adequada para uma parteespecialmente difícil de um livro. Tem um trecho em A cor que caiu do espaço, por exemplo, que traz a descrição de umpoço. Bem, todo mundo sabe o que é um poço. Mas, lá pelas tantas, o Lovecraftfaz uma distinção em inglês entre o “furo” do poço e a “mureta” ao redor dofuro. Quais são os nomes em português para o “furo” do poço e a “mureta”? Eunão sabia. Como se chama o negócio que tu usa para erguer o balde? Eu tambémnão sabia. E assim tu passa uma tarde inteira procurando uma maneira boa deresolver essa parte do texto – e isso é o que eu considero a parte maisinteressante da tradução.