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27 de janeiro de 2012

Três perguntas para Pedro Brum sobre Caldre e Fião

 Coordenação do Livro e Literatura

Já postamos um texto sobre o pionerismo do escritor Caldre e Fião, um autor não muito lembrado mas de grande relevância para a literatura nacional. Hoje, na seção Salvo do Esquecimento, apresentamos uma entrevista que realizamos com o professor Dr. Pedro Brum. Pesquisador da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), na área de literatura e história, Brum possui um estudo dedicado ao escritor porto-alegrense. Recorremos a ele para saber mais sobre o legado de Fião e a importância de sua obra hoje.


CLL - Qual é a importância da contribuição deCaldre e Fião para a literatura nacional e gaúcha? Por que, ao contrário deJoaquim Manuel de Macedo, ele não é tão lembrado?


Pedro Brum - É estranho osilêncio que ainda hoje a historiografia devota ao pioneirismo de Caldre e Fião.Além de ter sido o primeiro ficcionista que publicou, em prosa de ficção,matéria de cunho regionalista na Corte, numa época em que a própria noção deregião ainda não fora configurada, também está entre os primeiros romancistasbrasileiros. Nenhum dos fatos, porém, foi suficiente para tirá-lo doapagamento, cujas raízes, ao que tudo indica, remontam ao próprio século XIX,pois uma visada sobre os oitocentos nos ajuda a entender a extensão doproblema. Ali, entre as poucas fontes que devotam interesse por registrosligados à porção mais meridional do território brasileiro, está o Dicionário bibliográfico português, deInocêncio Francisco da Silva, onde, aliás, encontramos detalhes sobre o livrode estreia de Caldre e Fião. Tirando essa referência e o material que se podecoligir em jornais fluminenses contemporâneos ao período em que as obras foramlançadas, não há nenhum outro registro de vulto. O autor de A divina pastora, enfim, cai no mesmolimbo que foi devotado a temas rio-grandenses na crítica e historiografia dodezenove.
Comoé freqüente na crítica e na historiografia literárias, as posições iniciais secristalizam. Assim, quando verificamos as leituras feitas ao longo donovecentos sobre o cânone de nosso romantismo, o extremo Sul normalmente ficade fora. Caldre e Fião, cuja ligação como abolicionismo parece ter sido um motivo forte para mantê-lo fora do cânone emformação, passada a fase do Rio de Janeiro, ainda incentivaria os jovens que,em 1868, fundaram em Porto Alegre o Partenon Literário. Já completamente devotadoàs atividades da medicina, aceitou de bom grado a função de patrono daagremiação lítero-cultural. Porém, essas veleidades do mundo da arte nãotiraram a primazia absoluta que continuou votando a seu trabalho de médicocomunitário, profissão que, conforme relatos de contemporâneos, rendeu-lhe umaexistência modesta até o final da vida em 1876. Em sua biografia, que registramuitos lapsos de informação, nada indica que tenha retomado, uma vez sequer, averve de ficcionista. Do mesmo modo, nunca teria reivindicado qualquer glória,mesmo quando os temas literários de que se ocupou no período da Corteapareceram reforçados na pena de Alencar e fizeram efervescer a geração doPartenon. Por essa ocasião, parece tranqüilamente convencido de que as causassociais podem mais que as literárias.


CLL - Caldre Fião era popular e bastante lido em sua época? Com quem ele possuimais afinidade literária?


Pedro Brum - Enquanto esteve naCorte, o jovem médico publicara dois romances: A divina pastora, novela rio-grandense (1847) e O corsário, romance rio-grandensse(1851). A esses teriam se somando, pelo menos dois títulos em folhetins, alémde teses sobre medicina e elogios dramáticos ao príncipe Dom Pedro e ao atorJoão Caetano. É inegável que essa atividade de escritor o tornou bastanteconhecido entre os círculos cultos do Rio de Janeiro, embora, ao que parece,seus títulos tenham sido logo “abafados” pelos nomes românticos que gravitavamem torno dos poderosos da época. Nesta fase também se envolve com o abolicionismo.Chegou a dirigir o periódico O Filantropo.Posteriormente, a publicação foi encampada pela recém fundada “Sociedade contrao tráfico de africanos e promotora da colonização e civilização dos indígenas”.O autor passou, então, a colaborar em jornais abolicionistas publicados no Riode Janeiro. Reside dessas colaborações, ao que tudo indica, suas indisposiçõespolíticas. De volta ao Sul, de acordo com Carlos Reverbel (Traços biográficos de Caldre e Fião. Posfácio de A divina pastora.Porto Alegre: RBS, 1992), teria sofrido represálias de Manoel Pinto da Fonseca,então o maior mercador de escravos do Brasil, que contava com proteção legal.Cogita-se, em função dessas animosidades, que as novelas de Caldre e Fião foramtiradas de circulação. Não é de admirar, portanto, que A divina pastora tenha sumido por 145 anos, até ser redescobertapelo livreiro Adão Fernando Monquelat, de Pelotas, que, em 1992, localizou umexemplar em Montevidéu.
Já no campo das afinidades, a aproximação comAlencar é a mais evidente. A começar pelo próprio fato de que as primícias doautor gaúcho ajudam a entender o poderoso papel de catalisador que o criador deO guarani ocupa na literatura donascente Estado brasileiro. Se em Caldre e Fião verificamos pioneirismo, é sempreem Alencar que encontramos a constante e aguda percepção da oportunidade detemas e situações. Para ficarmos na questão rio-grandense, lembremos que muitoantes de O gaúcho, A divina pastora elege o motivo daguerra e da violência como apelos definidores do caráter humano predominante doextremo meridional do Brasil. A Revolução Farroupilha, porém, havia acabado háapenas dois anos quando saiu o romance do sulista, razão pela qual, osprotagonistas de Caldre e Fião, justificadamente, a vêem com desconfiança.
Poroutro ângulo, um exame mais acurado permite supor que a obra de Alencar, hámuito, flertava com temas e situações que abundam nos textos do pioneiro autorrio-grandense. Há, por exemplo, semelhanças evidentes entre Loredano, vilão de O guarani (1857) e Vanzini, protagonistade O Corsário – que, a exemplo de A divina pastora, recebera bastantepublicidade na Corte. Neste segundo romance do autor sulino, Giuseppe Vanzine éum aventureiro que, após farsas e saques em sua terra natal, dera na costa rio-grandense,onde, como sobrevivente de um naufrágio, fruto da astúcia e do logro, continuasua existência errante, à qual não faltam a lubricidade diante das donzelasinocentes e a esperteza frente a almas ingênuas da província. Assim como esteVanzini de Caldre e Fião, o Loredano de Alencar esconde um passado obscuro, quesomente aos poucos vai se deixando revelar na narrativa. Ambos possuem origemitaliana, inclinações violentas, ganância excessiva. Ao que parece, a possívelleitura de Caldre e Fião teria instigado Alencar a escolher um vilão italiano àmoda inglesa para arquitetar o núcleo da intriga de O guarani, obra que lançou sua proposta daquilo que julgavanecessário para uma verdadeira renovação da literatura brasileira. Alencar, aoque tudo indica, percebeu nessa figura um tipo à altura para desafiarportugueses e índios e fazer-lhes dar mostras de coragem e altivez moral. Loredano,à semelhança de Vanzini, é um tipo que parece dotado de poderes infernais. Seusfeitos, muitas vezes, desafiam as leis da probabilidade e se colocam além dacompreensão racional, indicando suas origens literárias que vêm do romancegótico. Não é absurdo, portanto, que protagonize cenas fantasmagóricas, cujosindícios se repetem fartamente no relato com o objetivo de reforçar amalevolência do vilão. Alencar, a exemplo de Caldre e Fião, parece apostar noestereótipo do vilão italiano à moda inglesa – e esta é uma coincidência significativa,especialmente quando se sabe que o tipo não é comum nas tramas brasileiras daépoca, muito mais interessadas em conjuntos de complicações destinadas a poremamantes à prova e ilustrarem o triunfo da virtude.
De outra parte, quem leu A divina pastora e conhece Almenio, suanobreza de alma, a região serrana por onde circula preferencialmente, suadestreza com a montaria, não estranha Manoel Canho, o gaúcho de Alencar, mesmoreconhecendo que, neste último, é acrescida a genealogia de Bento Gonçalves, aesta altura já com foro de herói, e que seus passos ressaltam, mais que noantecessor, as variações do meio físico rio-grandense.
Essasaproximações demonstram, na verdade, o quanto Caldre e Fião soube incorporar emsua nascente obra aqueles aspectos que, oriundos da pátria comum do romantismo,solidificaram a fonte dos tantos afluentes por onde navegou a ficção do tempo.

CLL - Quais são as características mais salientes do autor?

Pedro Brum - Caldree Fião, além de figurar entre os primeiros romancistas brasileiros, exploroutemas e motivos que mostram sua perfeita sintonia com os de sua época. Basta compará-lo,como fizemos, a José de Alencar, o principal autor do tempo, que lhe éposterior, para verificar a existência de uma interlocução interessante entreambos, sobretudo no que diz respeito à exploração ficcional da geografia dovasto – e desconhecido - território brasileiro.
Aí pela metade do século XIX, de fato,tornava-se imperioso explorar a terra virgem, flagrar-lhe o aroma e, na medidado possível, compreender-lhe as idiossincrasias. Esses, como sabemos, eramgestos caros à ânsia romântica em voga, que propalava um fervor místico ànatureza e à glorificação dos valores pátrios.
Caldre e Fião deixara a terra natal paracompletar estudos na Corte, onde publicou, num curto espaço de tempo, tudo quese conhece de sua prosa de ficção. Em dois romances e alguns folhetins, colocouem cena escaramuças de guerras, donzelas, salteadores e mocinhos, tendo comocenário típico e preferencial planaltos e escarpados rio-grandenses.